Cássio Berg Barcellos

São os policiais detentores de direitos humanos?

Cássio Berg Barcellos
Policial federal, doutorando em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela UCPel

Em 24 de junho, noticiou-se a indignação de setores da segurança pública em relação à decisão judicial proferida em comarca do interior do Estado, a qual ao apreciar a ação de um indivíduo que recebeu a tiros policiais civis e acertou a cabeça de um deles, quando cumpriam mandado de busca e apreensão, entendeu por afastar a decisão do ato do Tribunal do Júri ao capitular o delito como de resistência, classificado como crime de menor potencial ofensivo.

A decisão judicial é perfeita na forma, mas perturbadora na essência. O ato praticado pelo réu passou a ser algo simples e banal, o mero exercício de um "não-querer", o que nos fez vislumbrar outras situações vivenciadas pelos policiais. Trata-se da construção da identidade do agente da lei perante a sociedade, a qual tem sua origem no termo "polícia", que é aquela que cuida da polis, da cidade. A esses cuidadores, muitas vezes lhes são imputados atributos negativos, ora os desqualificando com alusões a comportamentos indevidos (aproveitadores, abusadores de sua autoridade, racistas, assassinos) ou os despersonalizando com sua animalização, nominando-os de ratos, de porcos. Produções "científicas" generalizantes em que o policial é a personificação do mal e o bandido é a vítima.

Esse processo deletério começa pela academia, que enxerga no Estado e em seus agentes o monopólio da violência. Ao assim proceder, essa academia tacha tais profissionais de "violentos". Todavia, não há esse monopólio, porque nenhuma violência é justificável, seja ela física ou psíquica e, quando nociva à vida, é passível de escrutínio e responsabilização. Os policiais são detentores da autoridade, na fraqueza dela seus agentes devem usar a força progressivamente. Aplica-se a força da lei e dela é o monopólio. Não da violência. Argumenta-se que os direitos humanos são aplicáveis somente aos presos, ou demais infratores, em um tom de exclusividade. Disso resulta a construção de um ideário em que resistir à ação regular desse representante do Estado soa, não fosse absurdo, justificável. Os direitos humanos, por serem universais, indivisíveis e inalienáveis, não são exclusivos de nenhuma categoria. Se oponíveis por todo cidadão ao Estado enquanto ente abstrato, de igual maneira assistem aos seus servidores (o que é de um, é de todos).

Não se ignora que as polícias tenham suas mazelas, que necessitam de controles internos e externos, neles incluídos os sociais, mas a quem interessa essa desqualificação generalizada? Não se pode negar a necessidade da sua depuração. Mas, por outro lado, há que se ter a compreensão de que por trás de uma insígnia existe um ser que sente, que sofre, que tem família, que paga impostos e que, ao sair de casa, coloca sua vida em risco simplesmente por ser o funcionário público que é _ um(a) policial. A desumanização é um atentado à dignidade dos servidores, dos seus direitos humanos.

Portanto, a decisão judicial que tanta irresignação causou, por ser proferida por um intérprete das normas (representando o Estado) e sendo uma ordem em cumprimento, ultrapassa os limites do processo a que pertence, produzindo uma mensagem distorcida àqueles que tem o dever de a ela se submeter. Significa a possibilidade de ilimitada resistência contra os enviados da lei, permitindo ao criminoso lutar contra os monstros que lhe assombram, sejam eles outros delinquentes, sejam eles os policiais, já que "não-humanos".

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